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Digo eu

Digo eu

Corte de cabelo

 

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Indecisa entre cortar o cabelo ou deixa-lo tal como estava, tinha-se tornado quase numa obsessão. Não sabia o que fazer da sua imagem nem o que achava de si própria. Não queria saber da idade. Os anos de experiência pela vida marcada, perturbavam-lhe a presença dessa imagem reflectida no espelho, em que os sinais de tanta pancada se acentuavam nas suas feições.

Não sabia o que achava de si própria. A vida tinha-lhe arrancado a sua juventude, enquanto vendia o corpo pelas ruas para poder alimentar-se. Tinha saído de casa aos 15 anos para fugir da loucura, da pobreza, e da habitual cena de ser molestada pela besta do padrasto, um homem repugnante encharcado em bagaço.  

Imaginava na paisagem a imagem de si própria. As folhas verdes do verão mudavam de cor e caíam,  levadas pela aragem que as amachucava. Era assim que se sentia - amachucada e indecisa, sem saber o que fazer da vida e do cabelo. 

Ela que tinha saído de casa aos 15 anos, deparava-se agora com o dilema obsessivo da sua imagem, sentada num banco de jardim a ver as folhas cair. Queria mudar de vida, pensava ela. Enquanto pensava indecisa, um simples raio de sol bateu-lhe nas costas e aqueceu-lhe a alma. Pensou na sua imagem e no que queria para si própria, começando por ir cortar o cabelo.  

Duvidas e questões existencais

Mães, nós não somos perfeitas.  Somos perfeitas à nossa medida e na medida do possível.  Digo mesmo que somos super mulheres só pelo facto de sermos mães. Passamos a vida com os filhos ao colo e ainda nos condenamos pelas raras vezes que nos enganamos. Errar é humano, lembrem-se disso. 

Proporcionamos aos nossos filhos o que temos de melhor. Não são os bens materiais que contam. É o nosso amor incondicional e melhor que isso não existe. 

Quando os filhos são pequeninos , dependem de nós para tudo.

Somos então as melhores mães do mundo. Orgulhamo-nos a vida inteira desde que nascem.

Do primeiro bocejo,

do primeiro dente,

do primeiro sorriso.

Das mãozinha perfeitas e doces que beijamos com o coração aos saltos.

Dos primeiros passos.

Das primeiras palavras que só conseguimos traduzir e saber o que significam...

E quando dizem mãe com todas as letras, ficamos então enfeitiçadas, de joelhos trémulos de emoção como estivéssemos a ouvir a melhor música do mundo ou a mais sedutora declaração de amor. 

É num instante que crescem, que dum dia para o outro nos empurram quando tentamos  abraça-los. A nossa simples presença é o cúmulo da nossa audácia! Eles não nos querem ver nem pintadas mas querem-nos sempre atrás da porta, no próprio segundo que se lembram de gritar por nós.

Servimos para lhe fazer aqueles favores que eles consideram nossa obrigação, estando inteiramente disponíveis para os transportar de um lado para o outro e meter-lhes dinheiro na mão.

Desafiam-nos e testam-nos, desobedecem e fazem questão. Afirmam e repetem, com todo o vocabulário que vão adquirindo  através das suas experiências, que somos um verdadeiro bloqueio e a pior cena para resolver as suas questões filosóficas, as suas crises existenciais e tendências próprias da idade. Eles não conseguem imaginar que já nos debatemos exactamente com os mesmos problemas e afirmam que a nossa experiência não vale nada.

As mães atrapalham.

Atrapalhamos mas vamos dando jeito pelo sim pelo não e lá no fundo estamos lá para tudo o que precisam. Eles precisam de nós mesmo quando dizem que há mães muito melhores do que nós. 

Com a nossa paciência vamos deixando que a fase passe. Eles saltitam de fase em fase, de crise em crise e nós levamos com mais um empurrão. Se eles de vez em quando levam uma palmada, nós levamos sovas umas atrás das outras através das respostas tortas e despropositadas, dos olhares provocadores que nos trespassam o coração. 

Devagarinho vão voltando. Vão-nos achando graça. Vão-se expressando e conversando, pedindo até a nossa opinião.

Eles não se dão conta de tudo o que passámos.

De tudo o que ouvimos.

De tudo o que gramámos.

Damos por nós a duvidar das nossas qualidades e do nosso amor incondicional. São também as nossas fases, as nossas crises e a nossa idade. Não nos condenemos por isso.

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Nós não somos perfeitas. Somos perfeitas à nossa medida e na medida do possível. Não há como duvidar. 

Maria (frazina) mãe e muito mais

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Benditas férias, maldita tralha! Não podia faltar nada para que nada faltasse... Maria franzina levava o seu tempo a fazer as malas para ir para o Algarve, ordenando a roupa de cada um por tamanhos e géneros. A roupa interior e os sapatos/sandálias eram colocados em bolsas à parte, umas de algodão bordado, outras de pano simples. Biberons e brinquedos, bóias e baldes, chapéus e toalhas de praia.  Fraldas! Berço e alcofa para o mais pequenino,  almofadas, lençóis de cama e de banho, colchas e xailes. Casaquinhos de malha.. Pensava na brisa marítima que podia muito bem fazer baixar a temperatura nocturna e além do mais, havia que contar com a nortada, com o pingo no nariz, com as tosses, as febres, os choros e mais uma série de trapalhadas.  

Costumavam ir para casa dos sogros em Lagos. Todos gostavam de praia, da casa e do casal, os avós paternos dos filhos de Maria franzina e João universitário.  Ele um bonacheirão, professor de português e francês, coleccionava pássaros. Era uma paixão que tinha - canários que enlouqueciam a mulher sua esposa com o constante chinfrim que faziam, noite e dia a cantarolar. Ela era danada e tinha muita graça. Maria franzina chorava a rir com o que lhe saia pela boca fora, sempre tão a propósito, cheia de perspicácia e um sentido de humor fora do comum. Todos gostavam de Maria franzina e faziam-na sentir-se muito estimada, pelo valor que davam às suas qualidades e à relação sólida entre ela e o filho primogénito, a quem estavam eternamente gratos por todas as ajudas que tão generosamente lhes prestava. 

O local das férias ia mudando à medida em que a família aumentava e a sua figura, sempre de esperanças, fazia parte do cenário.  De Lagos passaram para São Martinho, de São Martinho para a Praia das Maçãs até aterrarem em Cascais. 

Entretanto, o nono filho andava sempre agarrado às suas saias e ela deixava. Já lá ia a noite terrível de Outono em que Maria franzina julgava que o seu menino lhe ia morrer nos braços, mas a lembrança, essa  tinha ficado para sempre gravada na sua memória. Essa e outras, que durante o dia não tinha tempo de se debruçar sobre elas, mas que na calada da noite se instalavam na sua cama. Enquanto os outros dormiam tranquilos, Maria franzina apenas deitava a cabeça na almofada. 

Tinha que pensar em tudo e tomar decisões em relação à vida de toda a gente. Os colégios, as explicações, os trabalhos de casa. Cadernos e livros, lápis e borrachas. As notas e as dificuldades nas matérias, as relações entre filhos e professores, amigos e companhias menos saudáveis. Destinar o que se comia à mesa dos crescidos e à dos mais pequeninos, saber distinguir entre o que era imprescindível e o que era supérfluo, ter sempre em conta os centímetros e os quilos que cada um ganhava, e os que não ganhavam nada disso, precisavam de ser vistos pelo médico. Consultas no pediatra, no dentista e no raio que o parta. Boletins de vacinas sempre em dia, cortes de cabelo e renovação de sapatos. Bilhetes de identidade.

Havia costureiras que subiam e desciam bainhas, roupa que era reciclada, passando dos mais velhos para os mais novos.  Por mais que ela poupasse, os gastos eram imensos e nunca mais acabavam. 

Tantos filhos e ela ainda tão nova, sempre bonita, simples e bem arranjada, apesar da carga pesada. Além de ter sempre mais um bebé a caminho, as outras crianças também precisavam de atenção e cuidado. Por mais que esticasse os braços para responder às exigências individuais, começava a ser cada vez mais difícil notar-se o amor que sentia por cada um, cada um à sua maneira.  

Em Dezembro de 1961 deu à luz pela última vez. Aos 41 anos tinha 17 filhos, alguns dos quais já casados e a casa sempre lotada. 

Não tinha esquecido nada do passado. A separação dos pais, os tempos do colégio e do conservatório. A casa dos avós onde conheceu João universitário, as conversas deliciosas com o irmão mais novo e os passeios à chuva com a língua de fora. Os romances que lia, os quadros que pintava e as sinfonias que tocava no piano sem cauda. A primeira vez que foi mãe e todas as outras. A sua juventude conturbada e o agradecimento constante a Deus pela forma como encarou a vida que lhe foi dada. Maria franzina tinha uma liberdade de espírito sempre actualizada. Era uma mulher elegante e inteligente que muitos invejavam.

A entrega da Maria (franzina)

 

 

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Contra todas as recomendações do médico que assistia Maria franzina, ela e João universitário apostaram no destino e numa fé inabalável, confiando no instinto e na vontade de pôr no mundo os filhos que Deus quisesse. O amor entre os dois não poderia traduzir-se apenas num desejo carnal, mas tinha que ter um sentido muito mais profundo, baseado na convicção absoluta das suas crenças católicas. 

Havia sempre lugar para mais um bebé vestido de branco nos braços de Maria franzina,  a única cor que escolhia para os recém nascidos, puramente convencida que era mais uma dádiva divina. Não era fácil dar à luz em casa, mesmo sendo esse o procedimento normal para a época. Os partos foram todos eles dolorosos, desde o primeiro até ao último. Os sinais, esses já ela conhecia tão bem como a palma das suas mãos, moldadas de esperança e fé, confiando que cada um dos filhos seria perfeito e teria tudo para vingar  na vida. 

Dentro do seu corpo franzino e exausto, instalou-se ainda assim uma determinação de ferro que a fazia ultrapassar  os sintomas de mazelas que se iam manifestando. Crises renais e enxaquecas, traduzidas por dores de trepar pelas paredes eram algumas delas. Nada disso suprimia a sua fertilidade, nem tão pouco o desejo de se desfazer das vidas que cresciam dentro dela. Nem sequer se punha essa hipótese. Tanto para Maria franzina como para João universitário, a fé chegava para envolver todos os que iam chegando para aumentar a família. 

O seu nono filho nasceu num dia de outono. Lá fora, as árvores vestiam-se de cores de terra e fogo e havia no ar o cheiro de castanhas assadas. Maria Franzina deu à luz mais um filho, desta feita com deficiências respiratórias graves, o que poderia leva-lo à morte por asfixia. O tratamento proposto pelo médico para salvar o recém nascido, tão débil e assustado, era mais doloroso e cruel do que a deficiência respiratória em si. Era preciso ser persistente e possuir uma coragem desmedida para picar de cima a baixo o pequeno corpo recém nascido, aplicando-lhe ventosas por todo o lado que poderiam permitir a absorção duma membrana que o fazia assemelhar-se a um peixe fora d’água. A aflição era indescritível! 

Cada vez que Maria franzina chegava perto do berço para lhe aplicar o tratamento, havia pânico nos olhos do pequenino e a súplica insistente por paz e sossego. Era tudo o que ele pedia. Os dias e as noite eram longos, agonizantes e tristes.  Pela primeira vez Maria franzina teve medo da morte, enquanto o seu corpo era abalado por suores frios, tentando manter a serenidade. 

O seu instinto materno, mais apurado do que nunca, não podia consentir sujeitar o seu bebé a uma tortura medieval, ainda por cima, tendo em conta a sua ineficácia e a impotência desesperante diante dos resultados. Tinha que pôr um ponto final ao sofrimento do seu recém nascido, decidindo que seria com amor que iria partir em paz. Numa noite em pleno Outono, tirou-o do berço com todo o cuidado, embrulhou-o numa manta quentinha e ficou até de madrugada a embala-lo nos seus braços, fazendo questão que sentisse como eram calmos os batimentos do seu coração apertado. 

 

Bestas quadradas mandam nos outros

 

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Se a classe política mostrasse mais interesse pela humanidade em vez de roubar a moral do povo, o mundo seria bem melhor. Atrevem-se a falar de progresso e fingem importar-se com a miséria, quando na realidade são umas bestas quadradas do mais primitivo que poder haver, que no meio da fome e da desgraça derramam sangue pelo ganância do poder. 

O homem é cruel por natureza, frio e calculista.

Há outros homens que não o são porque têm uma outra consciência que pensa em soluções alternativas às que anteriormente fracassaram. Têm compaixão pelas dificuldades dos outros,enquanto desenvolvem paranóias e conceitos filosóficos, questionam-se e têm insónias,  trepam pelas paredes e fazem birras de amor.

Não são os grandes e os vaidosos que se preocupam com o conceito de humanidade. Esses querem ser os primeiros e os últimos a ter o dom da palavra, fazendo questão de mostrar a sua arrogância e ostentar o deu despudor.  Ditam sentenças e têm a pretensão de se intitularem os maiores, os mais fortes e os únicos cujos actos ficam para a história.

Ao contrário, os que reconhecem as suas fraquezas, os que dão a mão à palmatória, os que duvidam de si próprios e consideram os seus actos imperdoáveis, são os que mais se aproximam dos verdadeiros valores humanitários: clemência, compaixão, afabilidade e benevolência face às desgraças dos outros. 

Devíamos ser todos obrigados a passar pelo desespero, pelo vazio, pela solidão, e pela confissão da ignorância para sermos capazes de dar valor à esperança, à curiosidade, ao altruísmo e ao amor. 

As escolhas de Maria (franzina)

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Os acontecimentos na vida de Maria franzina atropelavam-se. De um minuto para o outro ficou noiva de João universitário, 9 anos mais velho do que ela. Era um homem feito e bem educado, cheio de responsabilidades, mesmo antes de começar a constituir família com a menina dos seus olhos, tendo a seu cargo, desde que tinha chegado à capital, os irmãos e os pais.

Casaram-se rapidamente sem grandes alaridos.  Maria franzina vestida de noiva viu-se diante do altar, para prometer a Deus e perante os homens, ser fiel e amar, em dias de sol ou de tempestade, independentemente dos acontecimentos e das circunstâncias.  João fez o mesmo. Proferiu os votos do matrimónio, consciente que tinha que tomar conta de Maria franzina e dos seus descendentes, jurando ama-la e respeita-la na saúde e na doença até que a morte os separasse. João tinha os pés na terra, Maria franzina continuava a sonhar. 

Não tinha tido tempo de se preparar para a carga que ai vinha. Tomar conta da casa, dos filhos, do marido e acompanha-lo na sua vida de trabalho, como seria de esperar.  Quando apareciam juntos, havia quem pensasse que Maria Franzina era filha de João universitário. Ele vestido de fato e gravata, assumindo o seu cargo e ciente dos seus compromissos, ela de saia rodada, ténis e soquettes com ar de quem precisava de correr pela praia perseguindo gaivotas e deixar-se levar pela corrente do mar. 

Os filhos nasciam em casa, uns atrás dos outros com pouco intervalo. Precisavam da sua atenção e dos seus mimos, enquanto ela embalava mais um recém nascido aninhado nos seus braços. Não tinha tempo para respirar diante da vida que se processava a galope, exigindo-lhe muito mais do que podia imaginar. 

Tinha que se manter bonita e atraente, mesmo quando o corpo pedia que descansasse. A vida social intensificava-se à medida em que João universitário assumia posições mais elevadas e o dever de corresponder ao que lhe era confiado. 

A casa ia crescendo, os filhos iam nascendo e as tarefas multiplicavam-se. Maria franzina não tinha mãos a medir para manter aquela empresa de resultados imprevisíveis a funcionar, ocupando todas as funções possíveis e impossíveis, gratas e ingratas, todas elas dependentes da sua competência, do seu dever, do seu carácter e desse amor que tinha no coração que nem sempre se traduzia em gestos de afecto palpáveis. 

Muitas vezes o seu corpo sucumbia e deixava-se cair por terra lavado em lágrimas. Lembrava-se então dos votos do matrimónio, do amor de João universitário, dos filhos que tinha posto no mundo e das demonstrações de amor incondicional que não tinha recebido dos seus pais, e logo se recompunha, arregaçando as mangas para continuar. 

Maria franzina, cada vez mais franzina, era metódica e perfeita nos mais pequenos detalhes. Estabelecia horários e regras aos outros e a si própria, mesmo quando lhe apetecia voltar à infância para subir às árvores e andar à chuva de língua de fora. 

O seu lado de menina e moça ficava entre ela e o seu irmão mais novo, tratado como seu filho mais velho, a quem continuava a fazer confidências e a partilhar gargalhadas, se bem que cada vez mais espaçadas. As asas de borboleta iam mirrando com o peso das responsabilidades e com o tempo, onde já não havia lugar para brincadeiras ou fantasias de conversas ao luar. 

Aos 23 anos deu à luz o sétimo bebé. O seu estado de debilidade era preocupante, tendo sido  avisada pelo médico que teria que ficar por ali, ou escolher entre a vida e a morte. Faltava-lhe dar à luz outros tantos e continuar a sua história.

Outros passos de Maria (franzina)

 

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Maria franzina sempre foi franzina e irrequieta. Quando ia a casa da mãe em Albarraque, gostava de correr pelo campo e sentir o cheiro da terra, subir às árvores e trincar maçãs, enquanto se passeava descalça à beira do riacho. Sempre na companhia do Zé, o seu irmão mais novo, filosofava sobre a vida tirando as suas próprias conclusões, baseada nos livros que devorava tão avidamente como as ditas maçãs, de sabor tão difícil de descrever quanto a sua própria sorte. 

Quando chovia, melhor ainda. Sem ninguém dar por ela, fugia pela porta para desfrutar do prazer da água a ensopa-la até aos ossos, sem dar pelo frio ou pelo incómodo da roupa molhada. Fechava os olhos mais rasgados do que nunca,  virava a cara para as nuvens e metia a língua de fora para absorver essa bênção que vinha do alto. 

Só regressava quando a chuva se esgotava e para ver como estava o porco, a quem tinha que lavar o pêlo todos os dias, esfrega-lo como quem esfrega soalho, até ficar cor de rosa. Sim, havia um porco naquela casa, alimentado a verduras e bolotas que não chafurdava na lama como qualquer porco normal. Era um animal de estimação bem cuidado, cujo pêlo cheirava a sabão de rosas.  

Sofia sua mãe, vivia obstinada pelo brilho de tudo o que tinha em casa, incluindo o caixote do lixo que polia até ficar mais lustroso que uma jarra de prata. Para Sofia, Maria franzina tinha muito ainda que aprender até chegar ao que considerava ser uma mulher arrumada e tão perfeita quanto ela.   

Depois do colégio interno, seguiu-se o conservatório. A disciplina severa das irmãs não tinha conseguido vergar o seu espírito rebelde demais, nem o o seu desejo inocente de ser livre. A música e o piano, um instrumento tão complexo de manejo difícil  seriam ideais para a acalmar, fazendo com que descesse à terra e parasse de sonhar com temas e ideologias, impróprias de uma donzela da época. Era em casa de Sofia sua mãe, que treinava e corrigia a posição das mãos, até conseguir tocar Chopin, Mozart e Beethoven, os compositores que mais a fascinavam. 

Sorria e pulava de entusiasmo quando Sofia sua mãe a recambiava para casa dos avós. Foi lá que aprendeu a fazer pickles e compotas. Por cima dos armários da cozinha havia dezenas de frascos apetitosos que contemplava com os seus olhos rasgados, como verdadeiras obras de arte  da sua avó. Comiam-se pickles a toda a hora, as melhores vitaminas para manter o corpo são durante o ano inteiro, pronto para afugentar doenças e suportar todo e qualquer tipo de trabalho. 

A casa dava abrigo a alguns hóspedes, estudantes universitários vindos de várias zonas do país, que ali encontravam um quarto, comida na mesa, roupa lavada e boa companhia, em troca duns tostões que ajudavam a sustentar o lar e a família.

Maria franzina ainda menina e bem disposta ajudava nas limpezas da casa, feliz por respirar o ambiente cheio de poesia e palavras sábias de rapazes universitários, que lhe lembravam os amantes dos romances que lia, por baixo dos lençóis bordados da sua cama.

Não havia ninguém que se incomodasse com a sua presença. Aliás, todos a tratavam com o devido respeito, enquanto conversavam descontraidamente sobre os mais variados assuntos, que ali não eram censurados. O ambiente daquela casa  era tão saudável quanto o corpo de Maria franzina que ia tomando formas, despedindo-se da infância para dar lugar à rapariga bonita e sensual, de olhos sempre rasgados, nariz estreito, boca carnuda e aquele cabelo moreno muito seu, sempre cortado a 3/4. 

Nada lhe indicava ainda que era ali que se encontrava o único amor da sua vida, um dos rapazes universitários. Iria dar-se início a outra fase da sua vida. 

 

O mundo severo de Maria (franzina)

 

 

 

 

Maria franzina de cabelo moreno e olhos castanhos rasgados, habituou-se a saltar da cama às 6 horas da madrugada, ainda no meio da escuridão e à luz da vela.  Arrastava o corpo com passinhos de corrida e continha as lágrimas para se lavar na água dum tanque coberto de gelo, que partia com uma pedra e toda a força que conseguia.

As suas mãos eram pequenas  mas já calejadas pelo hábito repetitivo e forçado e o seu corpo magro tremia de frio só de pensar na água do tanque gelada que a esperava.  Era a única maneira que havia de se manter limpa e apresentável durante o dia longo que se avizinhava. Ali não havia luxo nenhum. Nem sequer um espelho. Tinha apenas uma barra de sabão, escova e pasta de dentes e um pente, metido à pressa na mala pela avó. Penteava o cabelo moreno cortado a 3/4 e punha um laço para realçar os seus traços, sem ao menos poder ver como era a sua imagem. 

A disciplina rigorosa era ditada pelas freiras do colégio interno, não permitindo a Maria franzina de expressar o mais leve esboçar de pesar ou contentamento. 

Era ali que tinha que estar para aprender. Não só as matérias obrigatórias como todo um conjunto de tarefas destinadas a meninas como deve ser. Ali não havia querer nem hipótese alguma de contrariar aquela maldita tirania, aplicada por mulheres supostamente  benevolentes, de terço pendurado ao pescoço. 

Ali passava os seus dias, as suas noites e até os seus fins de semana, quando devia ir a casa brincar para recuperar da severidade a que era sujeita.  Foi ali que fez a sua primeira comunhão, o dia em que mais chorou a ausência negligente da sua mãe. Nas férias ia para casa dos avós, já que a sua mãe não tinha tempo para ela nem para o filho mais novo, que era tratado por Maria franzina como o seu filho mais velho, a quem dava todo o seu amor.

Eram companheiros de grandes conversas, confidências e gargalhadas sinceras, partilhando os melhores momentos de cumplicidade fraterna. Deitados sobre a relva, falavam sobre tudo o que queriam e  sonhavam com tudo o que podiam, aproveitando para esquecer as razões duma infância polémica. Maria franzina foi crescendo assim, entre o colégio interno e a casa dos avós, sempre cuidando do irmão mais novo como seu filho mais velho. Não sei como mas apesar de tudo, Maria franzina dizia que tinha sorte por ser feliz. 

 

Atrás da porta (vive um adolescente que sofre)

 

 

 

Vivias atrás duma porta trancada a sete chaves. Sabias vagamente da minha existência sem consciência de que eu era a tal que tantas vezes se apagava para te deixar brilhar. Se naquela altura tivesses aberto a porta para me deixar entrar, ficarias surpreendida com tudo o que tinha para te dar, já para não mencionar a rapidez com que eu saltava ao mínimo estalar de dedos da tua parte. 

Ficava de fora da tua vida sentimental, tentando adivinhar quais eram os problemas que te atormentavam, sempre na esperança de ver uma brecha por onde pudesse entrar. 

Batesse eu levemente ou com mais convicção, tinha do outro lado ora o silêncio, ora uns grunhidos selvagens de quem não quer ser incomodada, muito menos ser chamada à atenção. 

Eu não queria ficar à margem do teu mundo que já tinha sido o meu. Procurei ir bem fundo para compreender o sistema e achar a solução para as tuas tristezas, safar-te de trapalhadas para que pudesses dormir tranquila, sem nenhum sobressalto. 

Um belo dia acordei e não gostei do que vi. Tinhas traçado uma linha para manter a distância, seguindo um caminho que não se cruzava com o meu para me manteres na ignorância. Se tu sofrias, eu sofria o dobro. Passava por ti e num gesto de desespero, encolhia os ombros fingindo não me importar e para tu não saberes que me sentia a definhar, atulhada em soluços que não podia mostrar.   

Eu sempre soube que do crescimento faziam parte esses sinais de arrogância e maus tratos. Sempre soube que crescer é uma brutalidade. Para quem cresce e para quem vê crescer. São as inevitáveis  afirmações de personalidade. Há tantos choques provocados por sentimentos que não se conseguem conciliar, que mais parece um campo de batalha cheio de ódio e agressividade que só o tempo consegue dispersar. 

Passada essa fase sinistra de raios e coriscos, fomos reconstruindo o nosso mundo devagarinho. A cada pedra que colocamos, enterramos o passado. Voltei a saber o que pensas, mesmo quando escolhes não falar. 

Tudo sobre a minha mãe

 

 

 

 

 

 

 

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Meio século e um pouco mais depois, já não esfrego os olhos quando acordo e nem sequer me espreguiço. O corpo vai ficando diferente, mais velho e cansado, por toda a bagagem acumulada desde o dia em que nasci.  Memórias e análises empilham-se dentro do meu corpo como livros de histórias, guardando no coração as mais indispensáveis para não me perder. 

Todos os dias penso na minha mãe, na sua força e coragem, uma vida inteira de sacrifício e entrega a Deus em tudo o que fazia por amor. Lembro-me da minha mãe com meio século e um pouco mais de vida,  como eu agora tenho, daquela sabedoria tão mais valente do que a minha, da sua caminhada inteiramente dedicada aos outros e nos sonhos que deixou para trás. Penso na sua existência e no pouco afecto que recebeu, no sofrimento calado enquanto era repreendida por mostrar os sentimentos duma criança expressiva que precisa de  rir ou de chorar, quando era essa a sua vontade.

Penso nela todos os dias e todos os dias me pergunto como conseguiu aguentar tudo e todos, sem nunca abrir a boca para se queixar.

Aquela mulher minha mãe era um autentico pilar, onde todos se encostavam sem se darem conta da sua fragilidade, que a vida tinha obrigado a esconder para crescer antes do tempo, renunciando a alguns prazeres para ser mãe adolescente. 

Meio século e um pouco mais depois, ainda tenho ilusões e uma certa ingenuidade em relação à vida, assim como tinha a minha mãe. Não creio que isso faça de mim uma tonta e de tonta a minha mãe não tinha nada. Ela simplesmente acreditava que era aquele o seu destino, um caminho de entrega total, sem grandes alaridos ou grandes exigências duma contra-partida que favorecesse algum dos seus mais íntimos interesses.

A família estava sempre em primeiro lugar. Era essa a forma que tinha de demonstrar afecto e dedicação por todos nós. Um beijo e o sinal da cruz na testa de cada um ao deitar, não eram as únicas manifestações de amor. Uma mulher que se entrega como ela se entregou, sem nunca voltar atrás, só pode ser por amor. 

Com meio século e um pouco mais, sei que herdei parte da sua natureza mas nunca lhe vou chegar aos calcanhares. Uma mulher assim, com um perfil tão altruísta, só mesmo a minha mãe, a quem atribuo o Prémio Nobel da sabedoria e da infabilidade.

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