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Digo eu

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Outros passos de Maria (franzina)

 

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Maria franzina sempre foi franzina e irrequieta. Quando ia a casa da mãe em Albarraque, gostava de correr pelo campo e sentir o cheiro da terra, subir às árvores e trincar maçãs, enquanto se passeava descalça à beira do riacho. Sempre na companhia do Zé, o seu irmão mais novo, filosofava sobre a vida tirando as suas próprias conclusões, baseada nos livros que devorava tão avidamente como as ditas maçãs, de sabor tão difícil de descrever quanto a sua própria sorte. 

Quando chovia, melhor ainda. Sem ninguém dar por ela, fugia pela porta para desfrutar do prazer da água a ensopa-la até aos ossos, sem dar pelo frio ou pelo incómodo da roupa molhada. Fechava os olhos mais rasgados do que nunca,  virava a cara para as nuvens e metia a língua de fora para absorver essa bênção que vinha do alto. 

Só regressava quando a chuva se esgotava e para ver como estava o porco, a quem tinha que lavar o pêlo todos os dias, esfrega-lo como quem esfrega soalho, até ficar cor de rosa. Sim, havia um porco naquela casa, alimentado a verduras e bolotas que não chafurdava na lama como qualquer porco normal. Era um animal de estimação bem cuidado, cujo pêlo cheirava a sabão de rosas.  

Sofia sua mãe, vivia obstinada pelo brilho de tudo o que tinha em casa, incluindo o caixote do lixo que polia até ficar mais lustroso que uma jarra de prata. Para Sofia, Maria franzina tinha muito ainda que aprender até chegar ao que considerava ser uma mulher arrumada e tão perfeita quanto ela.   

Depois do colégio interno, seguiu-se o conservatório. A disciplina severa das irmãs não tinha conseguido vergar o seu espírito rebelde demais, nem o o seu desejo inocente de ser livre. A música e o piano, um instrumento tão complexo de manejo difícil  seriam ideais para a acalmar, fazendo com que descesse à terra e parasse de sonhar com temas e ideologias, impróprias de uma donzela da época. Era em casa de Sofia sua mãe, que treinava e corrigia a posição das mãos, até conseguir tocar Chopin, Mozart e Beethoven, os compositores que mais a fascinavam. 

Sorria e pulava de entusiasmo quando Sofia sua mãe a recambiava para casa dos avós. Foi lá que aprendeu a fazer pickles e compotas. Por cima dos armários da cozinha havia dezenas de frascos apetitosos que contemplava com os seus olhos rasgados, como verdadeiras obras de arte  da sua avó. Comiam-se pickles a toda a hora, as melhores vitaminas para manter o corpo são durante o ano inteiro, pronto para afugentar doenças e suportar todo e qualquer tipo de trabalho. 

A casa dava abrigo a alguns hóspedes, estudantes universitários vindos de várias zonas do país, que ali encontravam um quarto, comida na mesa, roupa lavada e boa companhia, em troca duns tostões que ajudavam a sustentar o lar e a família.

Maria franzina ainda menina e bem disposta ajudava nas limpezas da casa, feliz por respirar o ambiente cheio de poesia e palavras sábias de rapazes universitários, que lhe lembravam os amantes dos romances que lia, por baixo dos lençóis bordados da sua cama.

Não havia ninguém que se incomodasse com a sua presença. Aliás, todos a tratavam com o devido respeito, enquanto conversavam descontraidamente sobre os mais variados assuntos, que ali não eram censurados. O ambiente daquela casa  era tão saudável quanto o corpo de Maria franzina que ia tomando formas, despedindo-se da infância para dar lugar à rapariga bonita e sensual, de olhos sempre rasgados, nariz estreito, boca carnuda e aquele cabelo moreno muito seu, sempre cortado a 3/4. 

Nada lhe indicava ainda que era ali que se encontrava o único amor da sua vida, um dos rapazes universitários. Iria dar-se início a outra fase da sua vida.