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Digo eu

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Nostalgia de Maria (franzina)

 

 

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Sentada na sua mesa redonda com uma braseira por baixo, ouvia apenas o som do vento que batia na janela da sua salinha. Todo o mundo dormia e ela estava ali finalmente no meio da noite, entregue a si própria. 

Tinha diante de si a vida inteira escrita na sua agenda em cabedal de capa preta. Não havia nenhum outro objecto mais precioso do que a sua agenda, onde registava tudo o que não queria esquecer, começando pelas datas, horas, pesos e medidas de cada um dos filhos ao nascer. O tipo de sangue, a cor dos olhos e do cabelo, assim como outros detalhes referentes à saúde, pequenos apontamentos e sinais que lhe importava nunca esquecer.

Naquela mesma agenda, Maria franzina tinha os contactos de todos os que conhecia -  desde a família aos amigos, assim como os amigos dos filhos e dos respectivos pais, dos professores, dos padres, dos fornecedores, das lojas onde se abastecia e de todo o tipo de pessoal relacionado com as mais diversas profissões. A lista telefónica de A a Z encontrava-se naquela sua agenda de argolas, toda uma vida repleta de observações impressas pela sua própria mão. Notas nas margens que só ela entendia e num lugar específico daquela sua agenda guardava bilhetinhos com frases dos seus filhos que lia repetidamente, deixando-se enternecer. O calor da braseira aquecia-lhe o corpo enquanto olhava para a sua agenda de capa preta, sem vontade nenhuma de lhe mexer. Estava exausta!  Aquela fadiga dava-lhe uma preguiça atípica e um desejo incontrolável de se estender no chão. 

Empurrando a cadeira para trás com a força dos pés, abriu a janela e poisou os joelhos no chão para se deitar na tijoleira que lhe fazia lembrar a frescura da relva em Albarraque.  Estava indecisa entre chorar ou rir, imaginando a figura que estava a fazer e o espanto de João universitário se a visse naquele momento. 

Não quis saber. Tirou os sapatos, desapertou o vestido e estendeu-se assim mesmo, semi nua, enquanto fumava o seu cigarro e se deliciava com o ar fresco que entrava pela janela.   Precisava do seu irmão mais novo, de lhe confessar mil segredos e de ouvir as suas respostas comoventes. Tinha umas saudades loucas dele, das conversas únicas entre os dois, onde se podiam expôr sem qualquer inconveniente. Não havia mais ninguém no mundo como ele, uma parte inerente de si mesma que tinha sentido na infância o mesmo tipo de défice de afecto por parte dos pais. Quando deu por si estava a soluçar pelas saudades e todas aquelas razões que só o irmão mais novo poderia  compreender.