Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Digo eu

Digo eu

A mãe que nunca fui

 

 

 

 

Há mães extraordinárias. Enquanto os filhos são pequenos, são capazes de adaptar a casa à dimensão deles, para que possam mexer, passear, espezinhar e revirar a casa de pernas para o ar. O que dantes era uma casa apresentável e de bom gosto, transforma-se num verdadeiro parque infantil, onde não faltam brinquedos e nódoas por tudo o que é lado. Aceitam, com a maior descontracção possível mudar as regras e os horários, em função de um crescimento saudável, sem contrariar o menor gesto dos seus anõezinhos amorosos, mesmo que se vão tornando nuns selvagens insuportáveis e autoritários. Eles até podem escrever nas paredes, fazer das almofadas tapetes, abrir torneiras para inundar a casa ou abrir os armários só pelo prazer de partir pratos, que elas ficam imperturbáveis, achando que é a única forma de evitar que cresçam traumatizados. 

São mães extraordinárias, essas que se desleixam para que os filhos tenham e façam tudo o que querem, sem uma única chamada de atenção. Para essas mães extraordinárias, o conceito de educar mudou totalmente de feição.

Há outras mães extraordinárias. Aquelas que dão à luz só porque é chique ter imensos filhos. O problema é que mantêm uma distância tão grande dos filhos, que nunca os chegam a conhecer. Entrar na sala só mesmo para dizer boa noite e já vão com  muita sorte. No lugar que devia ser delas, estão outras que se encarregam de os educar, de os mimar, de os levar à escola e à natação. São as outras que sabem dos horários, dos problemas e das chamadas de atenção. Ao domingo, abre-se uma excepção onde a família se junta para ir à missa, todos perfilados e bem vestidos, para que se veja que são cristãos. 

Não lhes passa pela cabeça brincar com os filhos, ir ao parque ou debruçarem-se sobre os TPC. Para tal há explicadores que são pagos para fazer um trabalho que não consideram ser da sua competência ou jurisdição. Chegam as férias e lá vão elas de férias, deixando os filhos entregues a qualquer uma que lhes dê o que elas não dão.

Essas mães extraordinárias acham dramático dar atenção aos filhos, sem a mínima capacidade de resolver possíveis perturbações.

Querida família

 

 

 

 

 

Nós somos assim. Fazemos do fumo fogo que arde e se vê em qualquer parte. Graças a Deus temos essa  particularidade de dar cor e sentido à vida, mesmo quando estamos de rastos. Só nós é que entendemos a nossa maneira de falar à bruta, de dar a volta a histórias que fariam chorar as pedras da calçada, tornando-as numa comédia de faca e alguidar. Rimo-nos que nem uns loucos à mínima oportunidade, por razões que aos outros lhes passariam ao lado. Observamos os gestos e as palavras, a forma de andar e até de pestanejar, vendo manifestações, trejeitos  e hábitos que não escapam ao jeito que temos de os comentar. É por isso que nos rimos tanto. Tanto, que nos rebolamos no chão, deixando os outros espantados sem saber onde está a graça. Apesar de tudo, ninguém aqui é palhaço e talvez seja difícil de entender, como somos capazes de superar as fragilidades, tornando-as em motivos de novas gargalhadas. Quanto à sensibilidade, essa também não se perde. Guarda-se no coração bem grande de cada um e espalha-se através do olhar, das ideias malucas, dos passos confusos e da certeza absoluta da nossa originalidade. Quando há um desgosto, somos todos solidários. Envolvemo-nos em choro e abraços, nunca deixando que o fogo que nos une e se vê em qualquer parte, arrefeça ou se apague.

Fim de semana

 

cigarros.jpg

 

 

 

 

 

 

Tinha chegado o fim de semana sem qualquer programa à vista. Não lhe apetecia ficar em casa mas também não sabia para onde ir. O tempo lá fora estava cinzento, sem um único raio de sol a espreitar por trás das nuvens, deixando a hora triste e indefinida, tal como o seu estado de espírito.

Pensou no rodopio que já tinha sido a sua casa, nos horários que tinha cumprido, na quantidade de refeições que fumegavam à mesa de madeira maciça , que agora se encontrava desguarnecida. Cozinhar e pôr a mesa só para ela, sentar-se a olhar o vazio, não lhe dava prazer nenhum. 

No frigorífico havia um resto de sopa, um iogurte e pouco mais. Estava fora de questão ir ao supermercado e meter-se nas bichas, atrás de gente com carrinhos atulhados de comida, onde poderia ouvir as mulheres a tratarem os maridos por fofinho ou pelo apelido. Eles, por sua vez, tratariam de responder da mesma forma carinhosa, substituindo a palavra marido por gorda ou outra "pinderiquice" do mesmo tipo. 

Só de pensar no assunto, ficou com os pés em leque e sentiu um arrepio na espinha. Não era snob mas parecia. O facto de se ver sozinha em casa naquele dia cinzento,  sem saber o que fazer nem para onde ir, dava-lhe cabo do juízo. Tentou ligar para 2 ou 3 amigas, mas como sempre,  ninguém atendia os malditos aparelhos que apenas vibravam sem som do lado de lá, para não perturbar a tranquilidade da família.

Ao fim de 2 horas de impasse, fumando compulsivamente e já com o estômago corroído pelo nervosismo, parecia uma fera enjaulada. Enfiou um casaco às 3 pancadas, pegou nas chaves do carro e bateu com a porta de casa, em busca dum fenómeno imprevisto.

Carnaval

 

carnavaljpg.jpg

 

 

 

Carnaval é o que se passa  há vários anos neste país. Não estamos fartos disso? Não me venham então com carnavais e mascaradas com o povo todo aos gritos a fingir que está divertido. Não me venham com desfiles no meio da lama, com umas pobres figuras em cima de carros alegóricos a abanar o bumbum, que aqui o samba não faz sentido. Deixem-se de atirar ovos pela janela que há muita gente a passar fome  ou de gastar dinheiro à toa em fatiotas e mascarilhas, que logo depois vão para o lixo. 

Que andem crianças vestidas de fadas ou de super-homens, ainda admito. Elas sim têm direito a brincar ao faz de conta isto ou aquilo. Deixem-nas sonhar enquanto é tempo, imaginar que são heróis e brincar com serpentinas antes que meninice se esgote e que se dêem conta de como é triste o carnaval.  Eu nunca gostei de deslumbramento excessivo, de ver bundas de fora ou de purpurina. Não é essa a ideia que tenho de curtir a vida e para ser sincera, sempre odiei carnavais onde tudo é permitido. 

Caminhos

 

 

Inner Beauty.JPG

 

 

 

Com os seus vinte anos era uma mulher independente e charmosa, dando-se conta todos os dias que as suas conquistas não lhe eram entregues de mão beijada. Não podia ainda dizer que a vida era totalmente bela, nem que tinha conquistado um lugar ao sol, já que trabalhava que nem uma moura para se sustentar. Ao mesmo tempo, sentia um orgulho imenso nas decisões que tomava, sem ter ninguém à perna a dar palpites, interferindo nos planos que eram só dela. 

Tinha saído de casa 2 anos antes, na esperança de encontrar o que procurava, mesmo sem saber bem o que era. Lá naquele lugar confortável, a sua cabeça transbordava de ideias e ideais, acorrentados pela impossibilidade de os concretizar, nesse meio tão pequeno que conhecia e onde todos se conheciam, o que, noutros tempos,  já tinha sido uma vantagem. 

Para os amigos ela era a eterna louca, a mais disparatada, a que tinha umas gargalhadas que se ouviam a quilómetros de distância, mas também a que perdia mais tempo com eles para os aconselhar sempre que precisavam. 

A dado momento, o lugar de sempre tão confortável, tornou-se um mundo sem horizontes de espécie alguma e as conversas que circulavam, deixavam-na vazia e meio angustiada. Nada de novo no dia a dia, nada de novo para procurar, nada de novo nos lugares e nas pessoas que frequentava. Já nem conseguia ver beleza, nem amor, nem prazer em lugar nenhum. Tudo lhe cortava as asas, tudo lhe atrofiava o coração e as suas ideias não tinham pernas para andar num circulo cada vez mais apertado. 

Ela que tanto se questionava, que tanto desejava aprender e crescer por dentro, via-se agora a murchar naquele mundo pequeno, onde sentia já não haver espaço suficiente para ela, para os seus sonhos, para a sua escrita repleta de reflexões poéticas e filosóficas. 

Não sabia bem o que queria quando saiu de casa. Ao fim de 2 anos a trabalhar no duro, começou a entender que não havia um caminho certo. Que a vida era feita de vários caminhos e que todos eles lhe podiam dar respostas adequadas à vontade de satisfazer a sua curiosidade e libertação. Por outro lado, não abria mão dos valores enraizados. Concluía que a sua aprendizagem tinha começado em casa com o amor dos seus pais, que afinal tinham razão. 

Vaidade a quanto obrigas

 

espelho.png

 

 

 

 

Todas as mulheres são vaidosas. Okay, umas mais do que outras mas no geral ninguém se acha um coiro, mesmo que tenha buço e pêlos no sovaco. O mais espectacular é que quase todas dizemos que estamos péssimas, com má cara, gordas ou magras demais, recorrendo a dietas e a ginásticas que pouco fazem. Para que façam efeito, é preciso muita persistência, muito sacrifício e ainda para mais passar uma fome dos diabos. 

O drama das mulheres começa nos cabelos e acaba nos pés. Nunca estamos absolutamente contentes com aquilo que temos e lá partimos nós para os mais variados sítios, em busca duma transformaçãozinha que nos levante o ego. 

O cabelo é um dos maiores pesadelos: ou está comprido e precisa de corte, ou está naquela fase sinistra que não é carne nem peixe e nos faz enlouquecer logo pela manhã, procurando desesperadamente por um elástico. Se é ondulado, precisa de alisamento. Se é liso, convém levantar as raízes, como se se ficasse, por milagre, com uma juba invejável.  Cabelos brancos nem pensar!  Mal surge um no alto da pinha, lá vai tudo a correr para o cabeleireiro fazer um tom sobre tom, nuances, madeixas ou uma cena mais radical como pintar tudo duma cor qualquer que nada tem a ver com a original.

Pêlos nem vê-los. Mesmo que seja uma ligeira penugem nos braços, é fundamental cortar o mal pela raiz à base de choques eléctricos que custam uma verdadeira fortuna, equivalente à conta mensal de electricidade. Assim como assim, gastam-se mais umas largas centenas e o caso fica (ou não) arrumado. Já nem sequer é permitido ter pêlos nos sítios onde os deve haver, porque ao fim e ao cabo é muito pouco higiénico, resguardar a parte mais íntima do corpo que agora precisa de ser arejada. 

Depois é a pele que está um desastre. Manchas, borbulhas e rugas, oleosidade, secura e escamas que surgem sempre na altura menos apropriada. E lá se vão as poupanças em hidratações, limpezas e exfoliações, cremes que custam os olhos da cara, quando na volta fazem o mesmo efeito que uma lata de nivea do supermercado. 

Os pés que suportam todos os quilos do nosso belo corpo, requerem também especial cuidado. Quanto às mãos, que não são mais do que o espelho da alma, têm que andar impecáveis, lindas e hidratadas,  sobretudo se forem usadas na lida da casa.  

Enfim isto de ser mulher não é nada fácil, já que acabamos sendo escravas da nossa imagem para parecermos mais novas. 

Observando...

 

16649235_10203037954505485_2638436922815216923_n.j

 

 

 

Não fui feita para deixar envelhecer a minha maneira de ser, mas sim para ganhar maturidade, o que é bem diferente.  A minha aparência física não mostra a verdadeira essência que tenho dentro de mim, estrutura essa que adquiri ao longo destes anos que vivi. Experimenta falar comigo. Experimenta ouvir o que digo que não é só da boca para fora, mas sim o que fui aprendendo e interiorizando para chegar até aqui. Às vezes em mais nova, sentia-me mais velha pelos conflitos que se geravam às carradas no meu intimo. Sei lá, aquelas parvoíces que nos passam pela cabeça, sabes? Tipo, ter que lidar com as dificuldades e achar tudo dramático por falta de entendimento. 

As crianças não fazem dramas mas escolhem perguntas directas e dizem tudo o que pensam. Parece-me agora que voltei ao ponto de partida, só que agora a criança que há em mim observa e entende, mesmo quando nada me é explicado. 

Experimenta observar e não faças julgamentos. Sabes lá tu o que se passa dentro de cada um, as razões que levam os outros a agir de maneira diferente, face a uma experiência que dizes ter vivido mas que no fundo não viveste. Não deveríamos ser tão intransigentes nas críticas que fazemos, já que o nosso caminho não tem que ser igual ao de toda a gente. 

Se alguém se confessar a ti especificamente e te pedir segredo, não caias na tentação de dar com a língua nos dentes. Eu também aprendi isso com o tempo. A calar-me e a respeitar as confidências que me fazem, respeitando essa cumplicidade que agradeço. 

Experimenta falar comigo. Experimenta ouvir o que digo ou a entender o que escolho não dizer. O silêncio é uma forma magnifica de comunicar, quando se desenvolve essa capacidade de estar atento a sinais nem sempre evidentes. 

Na linguagem corporal consigo ver o testemunho do estado de espírito de muita gente, escolhendo cuidadosamente se me devo aproximar e exprimir-me através da fala, se vem a propósito manifestar-me com gestos ou se devo retirar-me pura e simplesmente. 

Tenho constatado que a minha forma de ser apenas amadureceu. Não fui feita para me deixar envelhecer porque deixei os preconceitos de lado, atirei os julgamentos pela janela, virei as costas às intrigas e às mágoas que apenas me levariam a enfraquecer. 

Lado a lado

 

 

 

lado a lado.jpg

 

 

 

 

 

 

 

Lado a lado seguiam os dois em silêncio para não discutir. Na véspera, tinham-se deitado na cama de costas viradas, sem ter feito as pazes antes de dormir. Estavam naquela fase de afirmação, em que nenhum dos dois estava disposto a calar as suas próprias opiniões, tão diferentes daquelas que já tinham sido comuns. Os filhos fora de casa tinham deixado um vazio que em nada os acalmava, afastando-os em vez de os unir. 

Sabiam que não devia ser assim. Afinal, tanto um como o outro tinham vontade de prosseguir lado a lado como até ai, sem que a ausência dos filhos deitasse a perder, tudo o que tinham construído. 

A meio do caminho as suas mãos tocaram-se. Com os olhos cheios de lágrimas, ela disse por fim: “o que foi que nos aconteceu? Não estamos naquela idade em que devíamos aproveitar a companhia um do outro? Não suporto este silêncio, nem esse teu rancor a cada vez que me olhas ou que falas comigo. Que mal é que te fiz?” 

“Mal nenhum”, disse ele, enquanto lhe estendia um lenço que guardava no bolso. “Tens toda a razão do mundo. Eu também não sei o que nos aconteceu, mas seja lá o que for, temos que resolver este assunto. Nunca deixei de te amar e nem sei porque deixei de o dizer em voz alta. Os nossos filhos fazem-me tanta falta!”

E a mim? Continuou ela... Eu deixei toda a minha vida de lado para que nada lhes faltasse e para que nada te faltasse a ti. Julgas que sofres mais do que eu? Parece que me culpas de terem crescido"!  

As suas mãos entrelaçaram-se. Seguiam os dois lado a lado, até caírem nos braços um do outro. Choraram e abraçaram-se. Beijaram-se sem cerimónia nenhuma, chegando por fim a casa de mãos entrelaçadas, dispostos a reencontrar as suas afinidades sem se perderem no meio do caminho. 

 

Sonhei contigo

 

 

 

Helena 1963.jpg

 

 

 

 

A meio do dia, sonhei contigo outra vez. Fiquei espantada pela serenidade da tua voz, que me contava como era estar ai desse lado. Custa-me ainda assim visualizar um espaço onde não há espaço, um tempo onde não há tempo e onde ninguém é marcado pelos sinais da idade. Todos são belos, dizias tu e ninguém sofre de nada porque não há sofrimento. Não há dedos apontados nem críticas a fazer e todos estão plenamente felizes e integrados, sem pecado ou culpas por esclarecer. Tudo é pleno e infinito, ousaste agora dizer. O homem é homem, a mulher é mulher, igualmente filhos de um amor que não se gasta nem se perde nesse espaço sem espaço para maldizer.  Continuaste a falar-me e eu continuei a ouvir-te, espantada pela serenidade da tua voz. Depositámos as cinzas no cemitério, enquanto tu és uma estrela que brilha agora no céu.  

Tudo por causa da chuva

 

rain.jpg

 

 

 

 

Podia ver a chuva através duma fresta da janela que caia com uma força brutal. O frio invadia-lhe os ossos e o barulho da água a bater dava-lhe a sensação duma tortura chinesa sem limites, desta vez arquitectada  pela crueldade refinada nas nuvens carregadas que se mantinham no céu. Os cães dentro de casa não paravam de uivar, correndo de uma lado para o outro a chafurdar tudo o que era canto. 

Estava a ficar doida,  presa dentro das quatro paredes, com vontade de morder nos cães ou de os despachar pela porta fora. 

Depois de roer as unhas compulsivamente até ao sabugo, começou a enrolar o cabelo a um ritmo desenfreado. Olhava para o relógio e não havia meio das horas passarem, logo agora que precisava desesperadamente dum ponto final na tempestade. 

A casa cheirava a mofo e das paredes, achava ela, escorria uma lama nojenta só para lhe possuir a alma. 

Tinha duas hipóteses: ficar ali a enlouquecer ao som dos tambores ou sair e deixar-se arrastar pela fúria do temporal, sabe-se lá até onde. 

Não pensou noutras alternativas, como acender a lareira, acalmar os cães, enrolar-se numa manta ou fazer um chá. 

No meio desta trapalhada toda e vá-se lá saber porquê, desatou a rir à gargalhada. Pensou no ridículo da situação, da figura patética que estava a fazer, tudo por culpa duma chuva que caia lá fora. 

Acendeu a lareira, acalmou os cães e embrulhou-se numa manta. Aqueceu água e fez um chá. Sentou-se por fim a ver o fogo e a ouvir o crepitar da lenha, com os cães em paz deitados aos seus pés. 

Pensou nos infelizes que não tinham tecto e que àquela hora tentavam dormir no chão frio e imundo, esses sim com razão para se sentirem tristes e abandonados à sua sorte. Do desespero passou à vergonha pela sua raiva insustentável.

Pág. 1/2