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Digo eu

Digo eu

O meu pai

 

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Um dia olhei para o meu pai, aquele homem, um senhor que trabalhou a vida inteira para sustentar a família, e pensei: Este gajo passou-se!

Não percebi que estava doente. Profundamente doente e solitário, depois de anos sem fim a ser bombardeado de responsabilidades e de nunca ter recusado ajuda a ninguém. Era o homem mais generoso à face da terra, mas nem essa tão grande qualidade lhe valeu de muito. Nos últimos anos da sua vida, passou dum homem respeitável a apenas um ser vivo a quem ninguém ligava. 

Passou daquela pessoa a quem todos recorriam, pela sua inteligência, a sua justiça e a sua bendita humanidade, para ser ignorado por todos. Poucos eram os que por ele mostravam alguma compaixão. Poucos lhe retribuíram o amor que sempre deu. Poucos o desculparam por se ter tornado num doente inconveniente e deslocado. Morreu sem ter completado 80 anos, com um derrame cerebral que o deixou na cama, sem consciência de nada. Um homem que foi um dia brilhante em todos os aspectos, um homem que deu tudo de si, morreu praticamente abandonado. Acompanhei de perto os últimos anos do meu pai. E fui-me deixando enternecer, através dos sintomas visíveis da doença, por aquele velhinho que era o meu pai. O meu pai tinha, além de tudo, um sentido de humor e uma graça invejáveis. A minha mãe era o seu anjo da guarda, a menina dos seus olhos, o grande amor da sua vida.

Sem descanso

 

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Há anos que a mesma cena se repetia. Deitavam-se os dois na mesma cama com uma vida inteira partilhada, cada qual com o seu feitio e manias que criavam atritos e afectos, adaptando-se aos rituais diários. 

Todas as noites, quando a hora chegava de partilharem a mesma cama, a mesma de uma vida inteira lado a lado, ele dormia e ela queria conversar.

Enquanto a mesma cena se repetia, ela fingia ter este diálogo: “Talvez me possas ensinar como se dorme como tu, tranquilo. Entras na cama, aninhas-te nos lençóis de linho e eu observo-te, meio perplexa, a deitar a cabeça na almofada, já com os olhos fechados mesmo antes de caíres num sono profundo. Adormeces no ar que respiro,  numa paz d’alma invejável, sem deixares que os abalos que sinto, interfiram nesse teu descanso merecido. 

Enquanto tu dormes imperturbável, eu olho-te daquele meu jeito meio estupefacta, por não te dares conta do meu nervosismo. 

Tu sonhas e eu penso. Penso em mil e uma coisas que se alastram a cada vez que inspiro. 

Nas óbvias e nas outras que me se propagam sem aviso, como se as óbvias não chegassem para me inquietar. 

Espírito este o meu que se aflige no silêncio da noite, pensando eu nas conversas que poderíamos ter tido, enquanto tu dormes e sonhas com regozijo.

Gostaria de partilhar algumas fragilidades que nunca partilho. Falar-te do processo das coisas que se alastram no meu raciocínio e não me deixam dormir como tu, tranquilo. 

Talvez me possas ensinar a deitar a cabeça na almofada, deixando que os olhos se fechem para acolher o sono, sentindo o mesmo prazer  que tu, no descanso que faria sentido.

Mas eu não sou como tu. Não tenho essa tranquilidade perante a vida. Não paro de pensar em tudo o que de maravilhoso temos nesta vida em comum, mas também nos diálogos que deixámos de exprimir, apesar dos olhares cúmplices que trocamos mas que às vezes não bastam. Sabes, às vezes é preciso conversar.”

E assim ficava ela todas as noites inquieta,  olhando o seu companheiro que dormia como sempre, numa paz d’alma invejável, enquanto ela suspirava. 

Desde sempre

 

 

 

Conheço-te desde sempre. Conheço-te até antes de nasceres. Desde o dia em que te instalaste na minha barriga que mais parecia um balão descomunal e depois disso. Sempre soube, desde o primeiro dia, que eras especial. Não há ninguém igual a ti. Ninguém que tenha as mesmas qualidades.

Ninguém que me faça sentir o que tu me fazes sentir, nem com a mesma constância ou intensidade.

 

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Eu olho-te e revejo-me, sofro ou deleito-me, conforme as variantes da tua maneira de pensar.

E antes de tu saberes que decisão tomar, já eu pensei por ti, acertando quase sempre, ainda que negues ou disfarces. 

Por mais que essa teimosia se arraste, por mais que insistas que lá no fundo não sei da missa a metade, nunca desisto até te provar, o que tu ainda não sabes que eu sempre soube, antes de tu sequer sonhares. 

Conheço-te de cor e salteado, mesmo quando me surpreendes.  Tão bem quanto as palmas das minhas mãos, moldadas, desde o primeiro dia, para te amparar. 

Conheço todos os teus cantos e até os teus segredos, eu sou capaz de adivinhar. 

Ficam comigo, como se fossem meus. Relaxa, não os irei revelar. 

Conheço-te desde sempre. Desde o primeiro dia.

Tão bem quanto a mim mesma, que te pus neste mundo para te adorar. 

Haja o que houver e onde quer que vás, faças tu o que fizeres na tua vida, o que sinto por ti, não muda nada. É para sempre. 

Quando te vires mãe como eu, com os teus filhos ao colo, vais perceber e sentir tudo o que sinto também e vais achar o máximo. 

 

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