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Digo eu

Digo eu

Algumas memórias

 

 

 

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Já lá vai o tempo da minha infância, oh se vai! Tenho na memória presentes alguns episódios marcantes, até de cheiros e sons que em mim se entranharam, trazendo-me lembranças de felicidade, interceptadas por alguns fantasmas. 

Partir pinhões com uma pedra e amontoa-los, enfia-los na boca e mastiga-los, sentindo o cheiro dos pinheiros bravos, era um ritual extraordinário. O vento soprava manso, deixava o cabelo desordenado, cobrindo ou descobrindo o meu ar de feições apaziguadas. Tudo cheirava a sol, tudo cheirava a mar. A pele, o cabelo e o espírito inocente que morava no meu corpo magro, gozavam dias inteiros do nosso Oceano que se estendia pela praia. 

Enquanto isso os pássaros cantavam e as formigas, sempre previdentes, abasteciam-se para a época do inverno. As férias eram soberbas e o verão era eterno, ainda que um dia o Outono invariavelmente chegasse. 

Regressava a hora  do colégio, do bibe, dos livros e dos cadernos. Despertar de madrugada e ter que sair de casa. O sono e o frio, a preguiça, a melancolia e as horas encafuada no carro. O dia passado no colégio, o bullying por parte dos mais velhos, a separação dos meus irmãos e o regresso de noite a casa, já bem cansada. Os horários que cumpria eram exigentes e nada apropriados para a minha idade. Deixei de comer, de dormir e a alegria ficava reprimida debaixo do meu ar assustado.  Na época não se pensava em psicólogos, muito menos para crianças pequenas. Era uma coisa exclusiva para malucos, não aconselhável a gente saudável, mesmo em momentos frágeis.  Mas sei que a minha mãe, então preocupada, me levou ao médico. “Esta criança está esgotada” ,  concluiu ele depois de me observar. Não registei o que se passou depois nem o tempo que fiquei em casa a recuperar.  Lembro-me sim de nunca me ter queixado de nada, porque engolia tudo o que sentia, pequenas e grandes angustias que se traduziam em crises de uma  ansiedade tramada.  Lá vinham então a arritmia e a bola histérica, dois sintomas que invariavelmente me aterrorizavam e me faziam pensar na morte prematura demais para a minha idade.