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Digo eu

Digo eu

Carta a um amigo (do coração)

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Na véspera tinha discutido com o seu amigo de toda a vida, tendo seguido para casa desnorteada e sozinha. A noite tinha-se prolongado mais do que o habitual, deixando-a especada e pensativa, enquanto olhava para o tecto do quarto, sentindo o ritmo cardíaco que lhe martelava o espírito. Ele tinha sido malcriado e estupidamente agressivo, por causa dum assunto mesquinho, uma coisa que ela não lhe admitia. 

Mal viu a luz dos primeiros raios de sol, saltou da cama aliviada e precipitou-se para a cozinha com aroma a terra molhada que vinha da chuva da véspera. Engoliu a muito custo um naco de pão com manteiga, enquanto beberricava o seu café. Tomou o seu duche e sentou-se finalmente na relva do jardim de sua casa com o seu caderno mais íntimo, aquele onde escrevia sempre com o coração. Preparou-se mentalmente para lhe dar um sermão, escolhendo bem as palavras para ser honesta e não destrutiva. 

 

"Já devias ter percebido, tu que tão bem me conheces, que as minhas  manifestações públicas ou intervenções prendem-se sobretudo com sentimentos. Não há nada melhor do que poder sentir e sentir o que os outros também sentem. A conversa de ontem, ou melhor o teu monólogo ameaçador, deixou-me apreensiva. 

Não tenho esse dom que outros têm, como tu por exemplo, o de saber expor ideias ou conceitos, defendendo-os com unhas e dentes através da fala. Geralmente não tenho, nem gosto muito de falar em público, sendo que profiro as minhas opiniões a um grupo restrito de pessoas mais íntimas, no qual te incluo, embora tantas vezes não faças caso e até te rias. 

Claro que também levanto a voz, claro que também discuto para defender o meu ponto de vista, mas cada vez menos o faço. E porquê? Porque não adianta nada discutir. Não adianta nada defender ideias ou impor seja o que for através de gritarias desenfreadas e muros em cima da mesa, que apenas me fazem ficar surda e recuar. Quem assim se manifesta, o mais provável é perder a razão. O erro e a ignorância gritam, enquanto que a razão fala baixo ou até pode prevalecer se se mantiver em silêncio. Queres apostar?

Quanto aos sentimentos, cada um com o seu tom de voz e a sua expressão, nem tu nem eu os conseguimos controlar. Somos os dois criaturas constantes a sentir e com uma enorme intensidade. É esse o caminho que tomo, é esse o caminho que me faz andar. Sentir intensamente é o que de mais precioso tenho dentro de mim. É por isso que escrevo em vez de falar. Porque a falar me perco e até me ausento. A falar, tropeço em palavras que não quero dizer.

Já tu, nunca calas o que sentes e às vezes assusta-me a maneira de te expressares. Apesar de tudo, tanto tu como eu sabemos que a nossa amizade é tão sincera, que não posso deixar de te dizer que fiquei profundamente sentida. Penso se o problema não estará no facto de poderes contar sempre comigo, apesar desse teu comportamento cada vez mais irascível. Convinha que deixasses de pensar que a razão está sempre do teu lado.

Vem lá ter comigo. Um beijo nesse teu coração mole, que até parece ter-se tornado empedernido!

 Só mais uma coisa: quando vieres falar comigo, pensa na minha maneira de ser. Fala baixo e devagar para que eu não perca a minha vontade de conversar, como sempre o fizemos".