Serão
Imaginem um casal de meia idade ao serão. Pois bem, nada se passa como nos filmes, onde a dona da casa prepara o jantar bebendo um copázio de vinho tinto, enquanto fala ao telefone com um dos filhos. Nisto, entra o marido, tira a gravata, beija a mulher com carinho e logo se prontifica para pôr a mesa, ao mesmo tempo que fala sobre o seu dia de trabalho. Durante o jantar desenvolvem diálogos transcendentes sobre a vida ou dúvidas existenciais, diálogos esses que continuam a rolar enquanto os dois levantam a mesa, lavam a loiça e arrumam no armário.
Sentam-se os dois de seguida no sofá, entrelaçando os dedos, falando dos filhos, da viagem que tencionam fazer nas férias, da festa surpresa que estão a organizar para um dos amigos que vai entrar nos 55... Tudo isto entre gestos de pura ternura e cumplicidade, ouvindo música dos tempos que remontam à juventude louca e atrevida. Foi lá que o primeiro filho foi concebido numa noite de pura paixão, enquanto nadavam de rabo ao léu numa praia deserta de areia branca e fina, água quente, sem vento e ao luar.
A realidade é outra bem diferente. Para já não há cá vinho para ninguém. Há água engarrafada ou da torneira em que se adiciona, 1 cubo de gelo, 1 pingo de limão e 1 folha de hortelã e já estão com muita sorte. Depois, a mulher prepara coisas rápidas e fáceis, muitas vezes aproveitando os restos da véspera, já que há que poupar.
O marido não usa gravata e chega a casa exausto, atirando o corpo em voo encarpado para cima do sofá desbotado, enquanto os cães abanam a cauda. A forma de se cumprimentarem é rápida. A mesa já está posta desde cedo e o jantar vai-se em 5 minutos sem haver tempo para conversas. Depois do jantar há a TV, o Iphone, o computador. Navega-se na Internet, matam-se saudades no messenger, esperam-se ver posts com novas fotografias, novas paisagens. Às vezes vê-se uma série. Outras atura-se o futebol. É muito raro não adormecerem os dois, roncando cada um para o seu lado. Acordam estremunhados, com o corpo dorido ou dormente, sendo penoso levantar do sofá quente e desbotado. Ao fim na noite os corpos cansados arrastam-se para a cama, onde de vez em quando há samba, outras forrobodó.